Individualismo, Criatividade, Cooperação e Avaliação

Atualizado há 11 meses


  • Não é a cultura do egoísmo, do individualismo, que frequentemente regula a nossa sociedade, aquela que constrói e conduz a um mundo mais habitável, mas sim a cultura da solidariedade; ver no outro não um concorrente ou um número, mas um irmão. Papa João Paulo II
  • Geramos um monstro que nos devorará. Este monstro chama-se soberba, insolência, egoísmo feroz. José Saramago
Sempre pensando sobre os desafios da pesquisa e das pós-graduações brasileiras resolvi reler o livro do Domenico Masi A Emoção e a Regra, os grupos criativos na Europa de 1850 a 1950. Após a leitura reeditei um texto de 2016 com uma nova visão e atualização.

Tenho notado uma mudança radical no comportamento dos grupos de pesquisa em computação no Brasil. Como participei de quase todo o processo de desenvolvimento desta área acadêmica, só para exemplificar quando voltei do doutorado tínhamos cerca de 60 doutores em informática fazendo pesquisa, consigo ter uma visão histórica do tema. No início havia uma grande solidariedade dentro dos grupos, o objetivo era de construir uma comunidade competente e de qualidade na área. O tempo passou e percebo, cada vez mais, uma visão individualista dos novos pesquisadores. Logo na introdução dos capítulos do livro se encontra este texto:
As habilidades intelectuais e a preparação rigorosa dos indivíduos são exaltadas por um forte envolvimento emotivo e, quase sempre, por uma admirável correção profissional, além de um forte senso de união por pertencer ao mesmo grupo. Espírito de iniciativa, confiança recíproca, vontade firme, dedicação total, flexibilidade, precedência ligada à expressividade do trabalho mais do que à instrumentalidade, orientação para o trabalho criativo, de preferência à vida extralaboral, mas também multiplicidade de interesses, competitividade nos confrontos com grupos concorrentes e solidariedade para os colegas do mesmo grupo, segurança das próprias ideias e capacidade organizativa às vezes acompanhada de ingenuidade exagerada e de ousada disponibilidade para com o risco, culto pela estética, pelos valores, pela dignidade e pela supremacia da arte e da ciência acima de qualquer outra expressão da atividade humana.

Aqui se nota tudo o que se perdeu! Basta olhar nosso ambiente de trabalho para perceber que os indivíduos tornam-se, mais e mais individualistas, muito mais orientados para a busca e o atendimento de seus interesses imediatos, exclusivos, indiferentes ao grupo. Fizemos um grande esforço para a qualificação de nossos programas de pós-graduação mas o resultado foi que objetivo entendido pelos jovens é que ter mais artigos publicados com QUALIS A1 é o essencial. Isto se tornou mais real quando até IES sem nenhuma pesquisa passam a exigir QUALIS para a admissão de novos docentes. O pior é a posição de muitos programas de pós-graduação que para dar uma dose de esteroides na avaliação da CAPES dividem os pontos obtidos em publicações pelo número de professores do grupo com a ideia de que se mais professores participaram do trabalho então o prêmio deve ser dividido, é um jogo se soma zero. Isso só leva ao individualismo, se alguém ganha, alguém tem que perder. Então um professor prefere trabalhar com colegas de outros departamentos para não perder pontuação, ou mesmo ser descredenciado do programa. Esqueceu-se de que a prioridade não é de somente publicarmos mas sim de construir grupos competentes e coesos que, estes, gerarão a produção de qualidade como a introdução do Domenico De Masi descreve como característica dos grupos criativos.

Até parece que o QUALIS é o culpado pelo individualismo! Mas precisamos ter consciência de que a tecnologia, aqui representada pela bibliometria atrás do QUALIS, é apenas uma ferramenta e se não construirmos valores humanos e éticos, se estas tecnologias não forem utilizadas com uma análise e comprometimento social os resultados podem ser muito ruins. O resultado poderá ser, e neste caso foi, uma baixa na qualidade do relacionamento humano intragrupos e do comportamento social. Está na hora de mudar o sistema de avaliação científico no Brasil. Basta de bibliometria naïf, precisamos discutir o que é realmente qualidade. Minha grande dúvida tem sido se uma avaliação exclusivamente baseada na produção individual é fair. Pode alguém produzir resultados adequados e justos socialmente em trabalho isolado? Se esta pessoa for alguém como o filósofo Kant que nunca saiu de sua cidade de Königsberg e revolucionou a filosofia com sua Crítica da Razão Pura, tudo bem. Mas nós, simples mortais, financiados pela Sociedade podemos ser avaliados e trabalhar em ermitagem? Esta dúvida e reflexão se aplicam para os pesquisadores em todas as áreas em que equipes são essenciais. Talvez este raciocínio não possa ser considerado para os pesquisadores realmente teóricos. Mas mesmo assim tenho dúvidas sobre se o ambiente não é um elemento essencial para estimular estes trabalhos. Agora tive a esperança que a nova Avaliação Multidimensional da CAPES fosse melhorar o cenário, mas se transformou em uma coleta desvairada de dados na plataforma Sucupira. 

Claro que a avaliação bibliométrica é um prazer para os burocratas, um número não implica na necessidade de um julgamento humano. A justificativa é que na avaliação da CAPES há outros critérios. Mas de fato estes critérios saturam e pior muitos pesquisadores seniores acham que estes critérios não são relevantes: o que vale é publicar! Agora há, como já comentei, uma coleta burocrática de dados em um número incrível. Algum de vocês já viu um coordenador de pós-graduação enfatizando a necessidade de termos alunos de alta qualidade para formarmos pesquisadores competentes ou de termos mais interação entre os pesquisadores para termos melhor avaliação? Em todos os locais que conheço a ladainha é a mesma: publicar, publicar e publicar. Para uma boa avaliação são necessários menos dados mas de boa qualidade, isto se denomina redução dimensional: quais as melhores publicações, onde estão os melhores alunos formados, quais os melhores projetos conseguidos, qual a interação entre os pesquisadores e com os alunos.

Então a minha conclusão é: o QUALIS não é o culpado, nós somos os culpados pela sua má utilização. A CAPES tem insistido que esta é uma ferramenta para a avaliação dos programas de pós-graduação e não dos pesquisadores. Mas isto é um mito, se a avaliação dos programas é funcionalmente dependente das produções bibliográficas dos pesquisadores quem não vai transferir esta avaliação para estes pesquisadores? Não sou contrário a boas publicações, ao contrário acho isto essencial, mas não como o critério exclusivo. Está na hora de estimularmos a cooperação e não o individualismo e a competição exacerbada. Esta competição radical, este egoísmo feroz, como diz Saramago, estão criando a violência em nossas cidades e piorando a cooperação em nossos grupos de pesquisa. Vamos ter a humildade de reconhecer que o mérito é da equipe. Não sou contra critérios quantitativos, inclusive trabalho e publico artigos com boa densidade, o que não concordo é com a predominância quase exclusiva das publicações e com o individualismo exacerbado que está crescendo nos grupos de pesquisa. Acho que enfatizamos tanto a qualidade das publicações que o tema se tornou uma obsessão para os jovens pesquisadores.

(Acessos 2.132)